Real
e Realidade
No
dia-a-dia, as pessoas costumam usar como sinônimas as palavras
“real” e “realidade”. Mas, na verdade, são dois conceitos
diferentes. A realidade é uma noção dada a tudo o que existe
independentemente do homem e se impõe a ele. Já o real é uma
construção significante da realidade, é a realidade traduzida para
o discurso, para a língua, para poder ser socializada.
Quando
reduzimos qualquer coisa da realidade a uma palavra - “árvore”,
“montanha”, “amor”, “felicidade” -, na verdade, matamos
essa coisa para reconstruí-la conforme a capacidade de simbolização
e compreensão de uma determinada comunidade linguística. É fácil
constatar isso. Quando eu digo que em frente à minha casa existe uma
árvore, essa árvore passa a ser para você algo real, mas não é
a árvore da realidade. Isso porque, para poder abarcar esse
conceito, você não idealizou em sua mente exatamente a árvore que
existe em frente à minha casa, mas uma imagem, um conceito
padronizado
que você ativa toda vez que ouve a palavra “árvore”.
Ou
seja, para trazer a minha árvore da realidade para o discurso, eu a
matei, ou pelo menos, matei particularidades dela - é alta?, baixa?,
tem folhas pequenas, grandes?, tem flores?, ninhos de aves? Assim, essa
árvore que existe dentro da linguagem, é real, mas não é
realidade. Um
átomo já existia antes de o homem o entender e criar para ele esse
nome. Ou seja, ele já era realidade e se tornou real depois que o
homem achou necessário trazê-lo para o discurso.
O
real está ligado à atividade de relacionamento social do homem. A
realidade, para servir a essa necessidade, é sempre formatada para
se tornar real e essa formatação se dá pela razão. Aqui chegamos
num ponto interessante: quando debatemos, tomamos partido de algo,
julgamos, condenamos ou absolvemos, sempre o fazemos com base no
real. Ou seja, com base em um conceito moldado dentro de uma
comunidade eivada de ideologias, preconceitos... Nunca com base na
realidade porque essa é complexa demais para o nosso sistema de
racionalização.
O
problema é: quem escolhe os traços distintivos de algo da realidade
que serão usados para definir esse algo dentro da comunicação, ou
seja, do real? Então, as chamadas minorias devem se fazer essa
pergunta. Quem foi que agregou ao conceito “Negro”, a ideia de
inferioridade, submissão? Quem foi que traduziu
todo um complexo conceito de homossexualidade como sendo apenas
“aquele que faz sexo com outro do mesmo sexo”? Bem, a priori,
essas facilitações são úteis para que possamos guardar noções
básicas. Quando ouvimos “chefe de cozinha”, logo nos vem à
mente a imagem daquele longo chapéu branco.
O
problema é quando não ampliamos os conceitos e ficamos apenas com a
noção básica que, muitas vezes, é desvantajosa e leva a
estereotipações e preconceitos. Esses conceitos básicos, a que
recorremos para formar uma noção inicial de algo, é o que chamamos
de imaginários sociais. E esses imaginários podem ser mudados ou
ampliados. É como se fossem informações em nuvem a que todo mundo
recorre para formar opiniões.
A
chave para combater a percepção negativa que uma comunidade tem de
um grupo social, portanto, é agir para mudar os imaginários acerca
desse grupo. É o que os gays têm feito. Pouco tempo atrás, a
palavra “homossexual” já traria de imediato à mente apenas
noções depreciativas como “promiscuidade sexual” ou “doenças
venéreas”. Mas hoje, há um intenso trabalho de vários setores da
sociedade, notadamente da mídia, para importar para o real
características mais amplas e positivas sobre os homossexuais. Hoje,
as pessoas já conseguem ativar conceitos como “cidadão”,
“profissional”, “pai”, “mãe” quando ouvem a palavra
“gay”.
E
isso é um passo importante para combater o preconceito, pois altera
aquelas informações que estão no imaginário e que vão nos ajudar
a formar conceitos, ter opiniões e fazer julgamentos. As mulheres
travam essa luta há mais tempo. Há um século o imaginário sobre
elas trazia primeiramente as
ideias de “mãe”, “virgindade”, “pureza”, “recato”...
Hoje, já se vê a mulher compartilhando traços antes comuns apenas
aos homens.
Portanto,
toda luta contra preconceitos se dará em algum momento dentro do
discurso. Nossos problemas referentes à aceitação do que nos é
estranho estão, em algum grau ligados à dissonância
entre os conceitos de realidade e real. Ou seja, o que não aceitamos
nos gays, negros ou mulheres, são traços de sua realidade que se
nos impõem e que não cabem dentro do nosso código linguístico e
por extensão moral e ético. Mas o real pode e deve ser alterado,
visto que é cruel exigir de alguém que abra mão de sua essência
apenas para caber dentro da minha capacidade cognitiva. A realidade
se impõe à nossa ignorância.